Artista contemporâneo (ou o escaravelho pop)

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Por Alaor Ignácio


De barco a remo tiranizava a mansidão especular daquele lago de águas paradas. Tudo isso ali no fundo do pequeno sítio em que morava, onde nem havia tanta vastidão. As bordoadas elevavam gotas nas pontas das pás. Cada uma delas produzia círculos que só paravam nas bordas, para descompor a simetria pelo rebojo. Délio dera um mundo, todo pronto e civilizado, por aquilo. As poucas rendas da aposentadoria e aluguéis mínimos lhe bastavam para o esforço gradual dos músculos. Às vezes ancorava e lia um livro, em estado de ilha. Outras vezes, apenas observava os múltiplos movimentos aquáticos, sem ver ou ouvir o tempo passar. Quem o olhasse pensaria que aquilo era óbvio demais...
De repente, Délio se deu às artes. “Contemporâneas”, enchia a boca ao frisar.
A dormir, jazia. Fosse posto num vidro de formol e, quem sabe, ficaria exposto sem sinais de impertinências. Era portador de um sono sem fronteiras. Nenhuma ressonância ou hálito. Acordava como um passageiro de outro mundo, recém-desembarcado num planeta esquecido. A lógica própria, que então expressava, carente de pertinências, propunha um diálogo com seres invisíveis ou bichos pequenos. Fosse lhe cobrado um sopro de coerência, e Délio, com trejeitos fatalistas, repetia apenas: “vocês vão chegar lá, vocês vão chegar lá”...
Leu mais sobre movimentos artísticos, depois queria ser plural como o universo. Teria sido melhor se lhe escondessem os tais livros. Quem sabe minoraria sua mania de grandeza? Mas, não. Estimularam o velho Délio com muitas edições, até torná-lo contemplativo. Atordoado pelas metáforas, irônico como chuva de verão, não cabia mais naquela vila de gente simples e pensamentos anacolutos. Explicava belezas, corrigia sentimentos, perscrutava os “bons dias”. Querido, porque sim, mas odiado pela total carência de eufemismo, já mais para arrogante, cometeu o melhor gesto da vida quando partiu para expor na capital. Enfim, uma página virada.
Recheou de insanidade sua obra de arte. Havia moscas e tenebrosos insetos dispostos a dialogarem com as pessoas. Não fiquei até o final, para compreender o êxito do diálogo. O pernilongo parecia chorar. A barata buscava, quem sabe, uma metamorfose kafkaniana capaz de torná-la humana. O escaravelho, choramingas, mexia o narigão numa conduta que prenunciava o rompimento da barreira de espuma de barbear que o cercava no centro da mesa, ou da arte pela arte.

Sem um bom tubo de inseticida não sou ninguém nessas performances...