Adélia e Horácio: um caso de amor malandro

Posted in

Por Alaor Ignácio


A mais indispensável seguramente não era, mas fazia certa falta. Dizer que a beleza lhe fora um dom inato seria também certo exagero. Na verdade, faltava. Digamos, inexistia. Nem tanto quanto a audição, notadamente no ouvido esquerdo. De certa maneira compensada pelo vesgo olho, que sempre se atrevia naquela direção, assim, sem saber.  Não fosse a histeria notória e até se justificaria sua constante exaltação, manifestada aos gritinhos, um tanto desafinados. Mas temos que reconhecer sua lucidez. Apenas nos momentos de fome, é verdade. Já na digestão, passava.
Adélia colocava aquele olhar em Horácio da Silva.
Furtar a eternidade era o que sonhava. Seria mesmo um roubo, caso dispusesse de armas suficientemente eficazes. Viver? Já vivia de mazelas, apesar dessa expectativa frustrada, maior que o próprio pendor à malandragem. Não havia nenhuma dúvida que a pasma mãe era mesmo Luzicleide: mulher, lá de seus muitos homens, quase todos bandidos com mais ou menos renome. Extrair, entretanto, o DNA do pai era humanamente impossível. Foi esse, aliás, o motivo pelo qual Adélia jamais descobriu se era filha de Deus.
Horácio da Silva coxeava a perna esquerda, mas com a direita era capaz de vencer maratonas. Aposentado com bela renda, Horácio nem tinha tino para entregador de pizzas, mas cismou que seria no cumprimento dessa tarefa que lhe surgiria a alma gêmea. Haveria de ser alguém de gosto tradicional. A cada calabresa solicitada, margherita, quatro queijos ou portuguesa, Horácio entrava em êxtase. Movimento fraco, Horácio firme e forte. De repente, naquele telefonema: frango com catupiry. Adélia. Dizer no interfone do 44 a senha “Délinha”, porque morava sozinha, tinha medo. Horácio penteou os cabelos, perfumou-se, deu dois tapinhas nas próprias bochechas e seguiu. Ela! “O senhor tem tempo para saborear um pedacinho?”. Todo. Uma vida inteira. Ele, agora, menos manco. Ela, tradicional.
Aparência serena, modos econômicos, gestos ponderados, mas os olhos... Neles, vacilantes como nuvens, entregava-se aquele casal estranho, que tanto fascínio exercia sobre homens ávidos e mulheres falsas. Por revelarem dolo ou inocência, os olhos jamais contiveram vícios ou virtudes, e os de Adélia e Horácio viam sobre as possibilidades ímpares de enganarem alguém ou outrem. Independentes do humor da dupla tratavam de explicitar, ao observador cético, aquele caráter invejoso ou hipócrita, mas eram poucos os céticos diante daquele par de seres estranhos. Quando o novo entregador de pizza furou os quatro, dois de Adélia, dois de Horácio, um a um, por conta da tentativa de extorsão, ainda restou à dupla as poucas qualidades físicas. Mas foram os piores cegos dos quais se tem notícia em todas as Minas Gerais.