Um mundo movido pela Fé

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Por Thais Fernandes

Dizem que a fé move montanhas. Noite de 11 de outubro de 2013. Às margens da Rodovia Federal 153, dezenas de pessoas começam a se mover na mesma direção. A caminhada irá ligar a nossa Frutal, já calorenta nesta época do ano, a um de seus povoados, a Vila Água Santa. A BR-153 continua sua rotina de pesado tráfego de caminhões. Vez ou outra dão luz alta e buzinam para os visitantes a pé.

Um casal segue com as lanternas apagadas por volta das 19h. “Esses besouros já chegaram, eles atrapalham um pouco, né”. Rafael Silva dos Santos, caminha ao lado de sua namorada, Jullyana Rocha Cardoso. Ele veio pagar por um pedido que foi atendido há meses atrás. “Minha família é católica, mas só eu tenho esse costume de seguir a pé até a Água Santa”, explica. Os dois levam apenas o necessário para a caminhada. Na volta, irão pegar carona no carro do irmão de Rafael.

Quase todos caminham no acostamento com os carros em sentido contrário, para conseguirem enxergar os que veem em sua direção. Em determinado ponto avista-se um braço de terra em meio à BR. Os primeiros dizeres na placa anunciam “Água Santa”. Os peregrinos atravessam, com cuidado, a pista simples para prosseguir pela estrada de terra. Em um caminho que se convencionou como destino apenas para os caminhantes, eles vão noite adentro até seu destino. A trajetória segue por 28 km até o povoado. Lá, muitos acampam.


O dia de fé e o início da Água Santa

A romaria até o vilarejo se tornou tradição na noite anterior ao Dia de Nossa Senhora Aparecida. A massa de centenas de fiéis frutalenses ganha corpo com a participação de pessoas de outras cidades. Elas não param de chegar. O fluxo aumenta na data da comemoração. Entre as placas dos carros e ônibus, estacionados no terreno, estão municípios próximos como o Prata e Planura. Mas a fé não se restringe às cidades da região. Municípios como Uberlândia e Ribeirão Preto também aparecem nas placas dos automóveis.

Fim da manhã do dia 12 de outubro de 2013. Quem se aproxima da Vila, nota a dificuldade que será enfrentar a multidão. Muito se ouve sobre os números que envolvem a festa. A estimativa da Polícia Militar, presente na festa, para este ano foi de 20 mil pessoas. “Se eu acredito em milagres? Olhe bem para essas milhares de pessoas que se reuniram sem nenhum convite. Nós nunca fizemos propaganda da festa. Elas vieram pela própria fé. Pra mim, isso é o que se pode chamar de milagre”. Jeronimo Bernardo da Silva, o Seu Jerominho da Mina como é conhecido, anda pra cima e pra baixo na Vila durante a semana da festa. Ele ajuda a organizar a recepção dos peregrinos e gosta de contar as recordações que tem de sua passagem pelo local.

Seu Jerominho é irmão de D. Maria, a primeira a receber milagre no local, quando a Vila ainda era parte da Fazenda Cerradão.  Fala-se muito sobre a história de D. Maria da Mina. O relato mais comum é de que certo dia ela caminhava sozinha pela fazenda, quando teve uma visão de Nossa Senhora Aparecida, que declarava que a água da fonte era santa e aconselhava D.Maria a passá-la pelo corpo e bebê-la. A família confirma que D. Maria sofria de diversos males na época. Depois deste passeio, ela voltou diferente.

Fato, segundo Seu Jerominho, é que em 13 de maio de 1963 foi inaugurada uma capela logo acima da mina. “Foi a Maria quem colocou uma pedra de fundação no local onde devia ser construída a capela. Muitas pessoas disseram que a construção não duraria muito, porque ali, antigamente, era um brejo. Mas, depois de todos estes anos, a capela ainda está em pé e eu fui um dos que ajudei a construir”. Hoje, D.Maria ainda reside da Vila e, conhecida dos peregrinos, dá bênçãos quando vai à mina ou à capela.


O vilarejo, a lama, a crença

Para alcançar este local é preciso paciência e foco. Durante os dias de festa, dezenas de barraqueiros se posicionam, formando uma avenida, desde o início do terreno até a mina. No caminho, ofertas que vão desde objetos religiosos até panelas e cortadores de legumes. Vencida esta barreira, os fiéis chegam até o ponto em que, segundo D.Maria, houve a aparição de Nossa Senhora Aparecida. Lá embaixo, próximo à fonte, o segundo elemento, mais característico da Vila Água Santa: o lamaçal.

A lama, em paradoxo com a água cristalina da mina, é outro grande símbolo da Vila. O terreno, hoje, conserva o lamaçal ao lado da capela. Lá, durante o fim de semana da festa, crianças dividem espaço da brincadeira com adultos que parecem voltar à infância para se permitir adentrar no lamaçal. Alguns passam a lama nas pernas e braços. A maioria leva ao menos um sinal da cruz desenhado com a argila na testa. Paulo Henrique veio do município de Prata – MG. Fez a pé todo o trajeto. A primeira coisa atitude ao chegar, foi passar a argila no corpo. “Eu chego muito cansado, a lama serve para aliviar as dores. Já estou muito melhor”, afirma. Depois desse ritual, homens e mulheres parecem revigorados.

Ao lado da capela, uma amostra da longa história de fé do local. Um depósito de objetos acumulados por peregrinos guarda as muletas e peças de gesso. Esses últimos destacam-se pela quantidade. Os romeiros explicam que são símbolos de superação e de milagres alcançados por quem peregrinou até a Água Santa. Algumas imagens de santos, outras de índios e de Iemanjá também são vistas.

Na beira da mina, um casal de senhores descansa. Celina e Waldemar Alves são de Paranaíba, município do Mato Grosso do Sul. Sobre há quanto tempo frequentam a festa Celina relembra, “Nós conhecemos aqui desde 1961. Não tinha nada construído ainda... e voltamos desde então, todo ano”. É fácil encontrar peregrinos que tenham conexão de longa data com a pequena vila frutalense. Mas, para quem vem ao local pela primeira vez, talvez alguns elementos chamem a atenção.

Aqui não há uma religião única. Entre manifestações culturais, como uma roda de capoeira, e músicas de Folia de Reis, na pequena capela acima da mina apenas D. Maria pode celebrar com os fiéis. “Não é qualquer um que a D. Maria abençoa. Ela sabe quando a pessoa não está aqui por bem”, adverte Celina. D. Maria não tem horário fixo para chegar ou realizar a celebração, mas a fila de fiéis para entrar na construção impressiona tanto quanto a fila para beber da água da mina.

Em um dia comum, a BR-153 não vê muitos andarilhos. Na maioria esmagadora dos 365 dias do ano, a Vila é pacata e em uma cena típica pode-se ouvir o canto dos passarinhos em dueto com o som da água que jorra da mina. São menos de dez famílias residindo no local. Não há missas realizadas com regularidade. Não há filas. O único comércio presente é uma mercearia.

Apesar de tanta mudança, três coisas se mantém na Água Santa durante todo ano, há pelo menos cinco décadas. A mina despejando água, o lamaçal borbulhando argila e a intrigante figura central da Vila, D.Maria, que passeia pelo povoado cuidando de tudo.