Por que não somos indignados?

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Por Ana Carolina Araújo

Esta edição do 360 traz uma reportagem com Jeová Ferreira, que relata as experiências sofridas durante a vigência do regime militar no Brasil. Lendo a matéria, me indignei, mais uma vez, diante dos absurdos praticados neste período. Mas, para o brasileiro, a ditadura parece ter acontecido há muito tempo, os jovens a tratam mais como matéria a ser estudada na escola e ponto a ser cobrado nas provas do que uma reflexão séria, profunda e triste sobre abusos que nunca devem ser esquecidos para que nunca mais aconteçam.

Estive recentemente na Argentina e me tocou profundamente a maneira como nossos vizinhos lidam com o assunto. A última ditadura argentina durou de 1976 a 1983 e ficou conhecida por ter sido a mais sanguinária da América Latina. Organizações de defesa dos Direitos Humanos e associações civis estimam que cerca de 30 mil pessoas tenham desaparecido durante esse período, principalmente nos dois primeiros anos de ditadura. Para se ter uma idéia, a Secretaria Especial de Direitos Humanos, durante o governo Lula, divulgou que 475 pessoas desapareceram por motivos políticos no Brasil durante o regime militar.

O que mais me chamou a atenção na Argentina é que o país ainda respira as amarguras da ditadura. Nos jornais, na TV, nas ruas, o argentino ainda sofre e discute as conseqüências do que aconteceu entre as décadas de 70 e 80. O assunto surgiu na viagem em meio a um passeio turístico. O guia fez questão de parar, no meio do city tour, para nos mostrar o memorial que marca uma das muitas prisões clandestinas criadas para servir de cenário para as torturas a presos políticos. Essas cadeias levavam nomes irônicos como “Clube Atlético”, onde os poucos sobreviventes contaram, muitos anos depois, que sofriam tortura física e psicológica diariamente e que podiam tomar banho apenas uma vez por ano.

O movimento argentino conhecido mundialmente para que se faça justiça com relação aos abusos do regime militar é a Associação Mães da Praça de Maio. Desde 1977, mães que tiveram filhos desaparecidos na ditadura ocupam a principal praça de Buenos Aires, em frente à Casa Rosada (sede do governo argentino), pedindo que os culpados pela matança de presos políticos sejam punidos e para que as famílias sejam indenizadas.

Além da Associação das Mães da Praça de Maio, há outras organizações como a dos Avôs da Praça de Maio. Estima-se que 500 bebês, filhos de desaparecidos, tenham sido adotados por militares e seus amigos. Agora, os “Avôs” procuram esses órfãos do regime com uma forte campanha nos jornais e na televisão: “se você tem dúvidas quanto à sua identidade, procure a Associação dos Avôs da Praça de Maio”. Tem-se notícia que 103 “bebês perdidos” já foram achados, muitos filhos adotivos de militares.

A notícia que agora não sai das primeiras páginas dos jornais argentinos tem a ver com essas crianças. Suspeita-se que os dois filhos adotados por Ernestina Herrera de Noble, proprietária do Grupo Clarín – que inclui, além do principal jornal argentino, um portal de notícias e serviços na internet e uma rede de TV por assinatura – sejam filhos de mulheres desaparecidas durante a ditadura. Como há uma herança milionária em jogo, a família tem se negado a fazer o teste de DNA. Até que no início de junho, a Justiça ordenou que os testes sejam feitos. Ainda não sabemos os resultados.

No Jornal Página 12, o terceiro mais lido da Argentina, a memória da ditadura é preservada por meio da publicação, diariamente, de fotos e textos sobre os desaparecidos políticos. Hugo, o guia turístico, fica quase que exaltado quando conta sobre a ditadura argentina aos turistas. E termina seu discurso com um tapa na cara dos brasileiros que estavam no ônibus: “é uma matança muito recente para ser esquecida. A ditadura argentina aconteceu há apenas 30 anos. Não podemos esquecer para que nunca mais aconteça. Assim como vocês deveriam fazer no Brasil”.