Por Lausamar Humberto
Em tempos de Bolsonaros e de antibolsonaros, de fanatismo religioso, de Fla x Flu ideológico, é preciso refletir sobre tolerância. A tolerância deve ser o fundamento da vida social. Fundamento, seja de uma ideologia, de uma ciência ou de uma instituição é a base, o alicerce sobre o qual é construído tudo o que vem depois.
Vemos, ouvimos, ou lemos nos noticiários constantes notícias de intolerância, seja ela nascida do desrespeito à crença, à cultura, à cor, ou à opinião do outro. E isto acontece ainda com mais freqüência entre os nossos jovens. Tomemos um exemplo.
A internet, o espaço mais democrático e tolerante da mídia, paradoxalmente, torna-se um campo aberto e fértil para a intolerância. Recentemente, um jovem paulistano foi condenado por racismo pelo conteúdo de sua comunidade criada no Orkut. Isso está se tornando habitual.
Fiquemos apenas no Twitter, a mais nova febre da internet. Na recente eliminação do Flamengo da Copa do Brasil pelo Ceará, esta rede social foi usada como instrumento de preconceito contra nordestinos. Houve na própria rede, ainda bem, uma onda ainda mais forte de contra-reação, de censura a este comportamento. O mesmo se observa no Orkut. Basta clicar em pesquisa as palavras “eu odeio” e aparecerá uma infinidade de comunidades de pessoas que “odeiam” alguém ou alguma coisa.
A maioria destas comunidades são brincadeiras frívolas e inocentes: eu odeio acordar cedo, eu odeio segunda-feira, eu odeio água com gás e tantas outras. Em muitas o “eu odeio” é apenas sinônimo de “eu não gosto” ou “eu não concordo”. Estas são inofensivas.
O problema são as outras. E surgem: “eu odeio nordestinos”, “eu odeio negros”, “eu odeio evangélicos”, “eu odeio católicos”. Infelizmente, a lista de exemplos é imensa. Lendo os fóruns de discussão destas comunidades percebe-se que isto não é dito da boca pra fora. O sentimento é de ódio e rancor. Uma intolerância cravada na alma.
A maioria dos membros destas comunidades é de jovens de classe média. Jovens educados, informados, por certo bons filhos, bons alunos, bons amigos, mas intolerantes. Absurdamente intolerantes.
A tolerância é uma das tantas virtudes necessárias para elevar o homem à condição de civilidade. Ela é muito mais do que o simples respeito, é uma passagem para um estágio mais civilizado e menos mecânico do convívio entre os diferentes.
A diferença não deve ser apenas tolerada, porque assim se reduziria a um sistema de guetos estanques. Esta postura já levou ao surgimento do nazismo e do apartheid na África do Sul. É necessário conhecer, conviver, compreender o outro, sempre de espírito desarmado, sem os preconceitos estabelecidos e prontos a aceitar modificarmos convicções íntimas.
Para isso, a postura do diálogo é fundamental. Dialogar é, de forma humilde, tentar aprender com o outro. Absorver suas palavras, suas posturas, procurando, com isso, compreendê-lo. Dialogar não é discutir. Na discussão cada um quer provar o seu argumento e, na verdade, muitas vezes, nem está prestando atenção ao que o outro diz, está apenas esperando a sua vez de falar.
A percepção de nossa ignorância é também ponto importante para que sejamos tolerantes. Ignoramos mais do que sabemos e, por isso, a tolerância é um antídoto, uma prevenção contra o dogmatismo. É uma espécie de sabedoria que confronta o fanatismo, esse terrível amor à verdade. Porém, tampouco é tolerante aquele que só o é com os tolerantes.
Ser democrático e plural com quem pensa como a gente é muito fácil, difícil é manter esta abertura com os discordantes, ouvir e pesar realmente seus argumentos e permitir que nossas verdades sejam confrontadas e, se for o caso, modificadas. Pluralismo não é a livre discussão entre os concordes.
Ressalve-se que tolerar também não pode ser visto como simples passividade e submissão. Tolerância vem do latim “tolerare” que quer dizer levar, suportar e também combater. Se formos de uma tolerância absoluta, se não defendermos uma sociedade aberta e plural contra aqueles que pregam o ódio, o desrespeito e a intolerância com os diferentes, corre-se o risco de os tolerantes serem aniquilados, e com eles a tolerância.
Como disse o escritor Guimarães Rosa, “o bom das pessoas é que elas não estão terminadas”. Cabe a cada um de nós a nossa própria construção. E nesta construção cotidiana é preciso evitar que a intolerância faça parte de nossas vidas.
Poesia sertaneja
O péssimo nível da maioria das músicas do sertanejo atual, romântico ou universitário, criou um preconceito contra todo o gênero. Uma pena. Há obras espetaculares no sertanejo.
Dois exemplos: "Tardes Morenas de Mato Grosso", de Goyá, e "Serafim e seus filhos", de Ruy Maurity e José Jorge. Gosto de ambas na voz de Sérgio Reis. A primeira traz alguns dos mais belos versos da poesia sertaneja e a segunda é um verdadeiro épico, uma mistura feliz do realismo fantástico de Gabriel Garcia Marquez e uma construção de narrativa típica de um Guimarães Rosa. Como disse meu amigo Ricardo Botelho: “parece saída de Primeiras Estórias”. Extraordinárias.
Na próxima coluna, volto ao tema, mais alongadamente. Deixo como aperitivo a letra lindíssima da canção Riozinho, de Carlos Cezar e José Fortuna.
Riozinho
Meu rio pequeno, braço liquido dos campos
rodeado de barrancos, corroído pelos anos.
Vai arrastando folhas mortas e saudade,
pôr-do-sol de muitas tardes, ilusões e desenganos.
Cruzando vales, chapadões e pantanais,
bebedouro de pardais, branco espelho de luar.
O seu roteiro não tem volta só tem ida,
pra findar a sua vida, na amplidão azul do mar.
Riozinho amigo, são iguais as nossas águas.
Também tem um rio de mágoas a correr dentro de mim.
Cruzando n'alma campos secos e desertos,
cada vez vendo mais perto, o oceano de meu fim.
Riozinho amigo, nascestes junto à colina,
era um fio d'água de mina, e cresceu tão lentamente.
Margeando matas, ramagens, juncos e flores
passarinhos multicores seguiram vossa corrente.
Riozinho amigo, quantas vezes assistiu
acenos de quem partiu, encontro dos que chegaram.
Foi testemunha de muitas juras de amor
quantas lágrimas de dor suas águas carregaram.
Riozinho amigo, sobre a areia do remanso
animais em seu descanso ali vem matar a sede.
As borboletas em suas margens se amontoam
e depois alegres voam, na amplidão dos campos verdes.
A brisa encrespa o seu rosto de menino
como o mais terno e divino beijo da mãe natureza.
Lindas paisagens, madrugadas coloridas,
encontros e despedidas, seguem vossa correnteza.
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