Por Ana Carolina Datore
Julia Carvalho, 64 anos, nascida em Itapagipe e criada em Frutal. O que teria de diferente nisso? Uma mulher elegante, casada, que mora em um bairro distante do centro da cidade em uma aconchegante casa com seu marido e três cachorros. O que realmente teria de diferente nisso? Pois bem caros leitores... Julia foi a primeira mulher a dirigir ônibus federal em São Paulo. Sim, ônibus federal, ônibus de linha. E isso aconteceu lá pelos anos 70.
“O ônibus de Dona Julia”, era assim que tratavam na época. Nos anos 70 ver uma mulher, ou melhor, uma jovem mulher, dirigir ônibus era algo de se espantar. No imaginário das pessoas esse trabalho é predominantemente masculino, mas muitas mulheres também são apaixonadas pelo volante. É o caso da personagem, uma amante de sua profissão. E nada disso foi previamente pensado ou planejado, simplesmente aconteceu.
Em entrevista ao 360, Julia mostrou sua carteira de habilitação, sua carteira de trabalho, seus uniformes da última empresa que trabalhou, as fotografias em preto e branco e as folhas recortadas de jornais e revistas que falavam sobre a mulher que dirigia ônibus pela capital paulista.
1ª marcha: O caminhão do papai
Como tudo começou? O pai de Julia sempre teve caminhão, desde quando ela era criança. Um belo dia em que ele foi viajar, a garota encheu o caminhão de amigos, deu partida e desceu pela rua. Uma criança de 10 anos num caminhão pelas ruas de Frutal. Ao passar pela conhecida avenida Euvaldo Lodi, os amigos do pai da menina pularam na frente para parar o veículo. “Tomaram o caminhão da minha mão. Meu pai me deu uma surra muito grande e então me ensinou a dirigir direito”, lembra.
Quando adolescente, aos 16 anos, Julia se casou e seu marido tinha uma frota de ônibus. Quando um motorista faltava do trabalho era ela quem dirigia no lugar. Ainda menor de idade. Fazia viagens longas, muitas vezes de Frutal até Goiás, Mato Grosso. E tinha mais: viajava grávida. “Quantas vezes menor de idade e com a barriga grande fui para o volante? Parávamos nos guardas, levávamos multa. E então resolvi tirar minha carteira profissional quando completei 18 anos, assim que terminei o segundo grau no Ginásio Brasil, em Frutal.”
O casamento não deu certo na época e Julia se separou. Foi pra São Paulo “dar um tempo de Frutal” e deixou o seu filho com a avó.
Tomando as capitais
Em São Paulo, Julia teve o seu primeiro trabalho como motorista de ônibus, e para isso foi preciso que ela tirasse outra carteira profissional, no Detran. Ficou na terra da garoa cerca de dois anos e voltou para Frutal.
Ao chegar de volta em sua cidade natal teve um desentendimento com seu atual marido. Ele foi para a casa de alguns parentes em Brasília. “Me mandou um telegrama de lá falando que tinha arrumado um emprego na Viação Pioneira. Eu fui pra lá e não o encontrei, fui direto para a Viação. Achei a empresa e pensei que ele estivesse por lá. Cheguei e perguntei, perguntei, perguntei e nada, não achei meu marido. E então decidi fazer o teste para motorista. Fiquei em um apartamento de visitas da firma. Fui aprovada. O alfaiate fez meu uniforme pela noite toda e, no outro dia, já comecei a trabalhar”, conta. Três foram os aprovados daquele teste, dois homens e ela.
Em meio a essa história, o jornal “Correio Braziliense” do dia 7 de janeiro de 1978 publicou uma matéria no caderno “Cidade” com o título “ ‘ELA’ NO VOLANTE. O ônibus de Dona Julia”. Foi desse modo que o marido de Julia a encontrou: “Ele estava no Mercadão comendo um pastel e de repente leu ‘O ônibus de Dona Julia’ e falou ‘gente, o que é isso?’, e a partir de então ele me encontrou e passamos uns tempos por lá. Fiquei famosa, o Brasil inteiro me conheceu.”
A fama de Julia se espalhou por todo o país. A primeira mulher a dirigir ônibus de linha foi destaque no Globo Repórter e participou da abertura do Programa TV Mulher, apresentado, na época, por Marília Gabriela. “Dessa abertura do programa eu nem sabia, porque eles pegaram o tema de mulheres que faziam serviços masculinos, me filmaram e colocaram no início, na abertura do programa. E também dei uma entrevista para Jornal Nacional”, relembra.
Charme – e um pouquinho de desconfiança – ao volante
Ao mostrar suas fotografias antigas, Julia relembra seu tempo de jovem em que dirigia por São Paulo, Brasília e pelas estradas do país. “Eu era magrinha, meu último uniforme tinha uma gravata jeans, eu gostava de ser mais fashion. Gostava de ficar meio cocotinha, o cabelo era comprido, às vezes amarrava, fazia tranças”.
Julia conta que era muito querida pelos passageiros e que em época de Natal não tinha lugar em sua casa para guardar todos os presentes que ganhava. Mas, como nem tudo são flores, tinham as pessoas que não gostavam e até mesmo as que se recusavam a entrar em um ônibus comandado por uma mulher. Fora isso, a motorista sempre recebeu o carinho e a admiração das pessoas que viajavam de São Paulo para o Rio de Janeiro, ou de Brasília para Belo Horizonte.
Ao relembrar de suas trajetórias pelas estradas do Brasil, ela conta que ao mesmo tempo em que recebia duras críticas por ser mulher, muitas pessoas a admiravam e até a paqueravam. “Um dia eu estava em Brasília, e um homem em um carro conversível parou do meu lado no sinal fechado. De repente quando eu saí com o ônibus para levá-lo na garagem, o carro começou a me seguir, andou 40 km, muito longe. Quando cheguei à garagem, meu marido estava me esperando, o homem do carro ficou tão sem graça, deu a volta e foi embora.”.
Ela ainda pode dirigir profissionalmente qualquer ônibus, mas prefere ser motorista particular de carro, fazendo viagens longas, como para o Rio de Janeiro, Espírito Santo acompanhando pessoas que não possuem experiência o suficiente para dirigir em estradas. “Se precisar dirigir um ônibus e ir para algum lugar, eu vou. Estou ainda bem apta para isso, só não quero mais pegar nenhuma responsabilidade com uma linha”, conta.
Um quase desastre e a volta para Frutal
Julia voltou definitivamente para Frutal já tem 20 anos. Morou por 16 anos em uma casa na rua Itapagipe e hoje, com o marido e três cachorros, Julia mora em uma casa que foi toda pensada, planejada e desenhada por ela. É a “casa ateliê”. Mesmo antes de ser motorista profissional, Julia aprendeu, sozinha, a costurar. Em sua casa ela faz capas de almofadas, fronhas, lençóis, tudo manualmente.
Além desse trabalho, Julia também revende roupas de algumas lojas de Frutal. Então a casa vive cheia, além das visitas diárias dos irmãos, muitas pessoas a procuram para esses trabalhos manuais e também para a reforma de móveis antigos. “Adoro fazer essas coisas, porque agora nem tenho mais idade para ser motorista de ônibus, apesar de ainda ser convidada. Mas acho perigoso, a gente não tem mais o mesmo reflexo, não tem mais a mesma agilidade. Vou fazer 65 anos, não sou mais aquela pessoa de 30, 40...”.
Julia decidiu parar de dirigir quando levou um susto na rodovia indo de Belo Horizonte para Brasília. “Eu dormi no volante. Foi a única vez que aconteceu alguma coisa ruim comigo nas estradas. O ônibus tentou tombar, virou de um lado, eu consegui controlar e virou do outro, na terceira vez consegui colocar ele reto. Mas graças a Deus nunca sofri nenhum acidente”. Depois disso, ela foi trabalhar na Viação Rio Grande, em Barretos, há 77 km de Frutal, e ali encerrou sua carreira como motorista profissional.
A família da motorista
Ao falar sobre família, Julia se emociona ao lembrar dos pais e do filho , todos já falecidos. Tem grande orgulho da família que formou com os irmãos, e também da união que eles têm. “Minha mãe era musicista, quando eu tinha 12 anos, ela pegava o acordeom e fazia a gente dançar, eu e meus irmãos. Tínhamos que aprender a dançar e a tocar pelo menos um instrumento cada um. Eu toco piano, violão, aprendi tudo de ouvido, nunca fiz aula. Então quando nos encontramos em um aniversário, tudo vira festa”.
A maior dificuldade em meio a todos os desafios diários da vida foi quando Julia perdeu seu único filho, aos 24 anos. Ele deixou um neto e a mulher que hoje moram em Bebedouro, São Paulo. Quando cresceu, seu neto deu trabalho com relação a dependência química, mas hoje mora com a mãe e trabalha por conta própria. “Eu tenho uma família muito boa, são todos muito amorosos, meus irmãos vem todos os dias na minha casa. Eu tenho orgulho da minha família, somos muito unidos”.
Ao perguntar o que Julia espera daqui pra frente, a resposta é simples e direta: “O que eu espero daqui pra frente é trabalhar menos, passear mais, curtir mais a minha vida. O que pretendo é viver bem, passeando, com saúde, é claro”.
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