Por Even Vendramini e Rafael Del Giudice
Numa discussão sobre fé ou o estudo religioso, a primeira polêmica que surge diz respeito ao livro sagrado: “Primeiro nós temos que ver: que Bíblia? Muitas religiões pregam que a Bíblia é a palavra de Deus. Tá bom. Se é a palavra de Deus, então como tem interferência do homem? Quem escreveu a Bíblia? A Bíblia foi compilada em 314 d.C.. Ou seja, foi no terceiro século depois de Cristo que juntaram todos aqueles pergaminhos e formaram um livro. Nós precisamos ver qual era o interesse dos políticos daquela época em fazer isso. Porque eles queriam fundar uma religião nova? Até então, eles acreditavam em vários deuses. Chegou uma época que não teve jeito. Constantino viu que se não acreditassem em um Deus único, ia ficar difícil de governar, porque a maioria já acreditava nesse Deus único, então ele precisava tomar conta daquilo, e aí, muitas coisas foram trocadas, continuam sendo trocadas, adaptadas até hoje, dependendo da instituição”, afirma a teóloga Realina Silva Alves.
E o assunto religião no ambiente universitário? A discussão sobre isso é iniciada pelo fato de existir em Frutal a ABU – Aliança Bíblica Universitária. Um grupo de jovens que se reúnem todas as quartas no intervalo das aulas noturnas na UEMG. Para eles, é possível sim um estudo religioso no meio acadêmico. E que, embora a ABU seja uma espécie de braço da fé evangélica, está aberta para qualquer pessoa que quiser participar.
O movimento teve início em Frutal em maio de 2012. Em sua história geral, começou no final dos anos 50, a partir de estudos bíblicos praticados por diversos cristãos. Os pioneiros no Brasil foram Robert Young e Ruth Siemens e, quando os primeiros obreiros chegaram ao Brasil, começaram a auxiliar na formação de líderes para a igreja evangélica brasileira. Ainda segundo a história da ABU, o grande desafio do grupo é a urgência de se proclamar o Evangelho integral em uma sociedade cada vez mais carente de Deus. Além disso, a ABU busca se preocupa com a comunidade que a envolve. As ações sociais também são foco do grupo.
Presidente da ABU-Frutal, a aluna do 6º período de Publicidade e Propaganda da UEMG, Gabryella Fernandes, participa dos encontros desde o início. Ela fala que a ABU é importante na vida do jovem porque surge, não só como um estudo religioso, mas também como um grupo de apoio para as pessoas que saem de casa e chegam a uma cidade nova: “Quando a gente não conhece ninguém, não tem amigo e nem família por perto, fica meio abalado, meio perdido. Muitas vezes nos afastamos de Deus, da nossa fé. É como se fosse uma ajuda mesmo pra gente se “alimentar” de alguma coisa boa e se “autoajudar”, não sei se essa seria a palavra certa”, conta.
Os encontros do grupo acontecem em uma sala no primeiro piso do Bloco B da UEMG. Lá, os membros levam temas ligados a algum assunto da Bíblia e começam a discussão através de outros textos, músicas, conversas e debates. Segundo Gabryella, ninguém está ali para pregar nada e nem levantar nenhuma bandeira, mas algumas pessoas ainda não entendem isso: “A maioria dos membros é evangélico, e de diversas igrejas. Não existe uma só igreja lá. E tem muitos católicos também que dão os estudos. Mas mesmo assim, acho que existe certo preconceito. Não só com os evangélicos, mas por ser algo conhecido como religioso. Acho que a faculdade e a religião têm meio que um bloqueio. Essa ponte é um tanto difícil de ser construída”.
Priscilla Lemos é aluna do curso de Letras, na UFTM – Universidade Federal do Triângulo Mineiro – e também participa da ABU daquela universidade. No grupo desde fevereiro de 2012, ela conheceu o movimento através da internet: “Eu vi um vídeo da Rede Fale (uma vertente da ABU) que denunciava a desapropriação de terras. A partir daí, comecei a procurar, vi que tinha um amigo que participava e fui. Eu era muito tímida, com o tempo, me soltei. Hoje, converso com todo mundo, participo e dou treinamentos também. Então, a ABU me ajudou muito nesse sentido”, conta.
Sobre a realidade vivida por ela, na ABU em Uberaba, Priscilla fala que a participação de membros de outras religiões, que não sejam as evangélicas, é rara. Ela conta também que, assim como acontece em Frutal, percebe um bloqueio das pessoas com a organização: “É sempre assim “ah, você quer impor alguma coisa” ou então “você fala uma coisa, mas você não faz”. Então sempre estão prontos para nos julgar, ou podar. Não nos deixam falar nada. E até os professores, às vezes também, por conta de algumas polêmicas, acabam julgando o todo por uma parte”, avalia.
Fé que pensa, razão que crê?
Mais uma vez, surgem dúvidas sobre a fé no meio acadêmico. Existe espaço para manifestação religiosa dentro da academia? E essa manifestação, deve se restringir à fé, à crença, ao misticismo ou, por estar no meio acadêmico, deve participar também da produção de conhecimento?
Augusto Vasconcelos é professor universitário e gosta de estudar a religião, ou, como ele prefere dizer, teologia. Segundo o estudioso, entender a teologia é muito importante para o mundo contemporâneo, pois essa ciência está diretamente ligada à economia: “Toda vez que a gente passa por uma crise, os investidores e acionistas das bolsas de valores, são os primeiros a falar “olha gente, mantenha a confiança, calma”. Manter a confiança é manter a fé, a crença. Então assim, a base da economia é a teologia. Não é à toa que nas notas de dólar tem lá “In God We Trust”, ou seja, “Em Deus nós Cremos”. Isso porque a economia é especulativa, porque a matéria da economia também tem o mesmo estado da matéria espiritual. Não é a fisicalidade que importa, mas é o jogo especulatório”, conta.
Mais do que discutir qual religião seguir, Augusto acredita que as universidades perdem muito ao desvalorizarem o estudo da teologia: “Eu não sei lhe dizer nem se é bom, nem se é ruim e nem se deve ser substituído por alguma outra coisa (a ABU). A única coisa que eu sei é: a gente perde por desconsiderar o papel não só da religião, mas da teologia na produção do conhecimento e no entendimento do mundo moderno. A gente acha que teologia é necessário só pra entender a Idade Média, e não é”, afirma.
Já a pesquisadora e também professora universitária, Daniella Portela, acredita que fé e razão (produção acadêmica) devem trabalhar em esferas diferentes. De acordo com ela, os pensadores, antes de terem uma religião, são pensadores racionais e o estudo deve acontecer. “O que não pode é a fé suplantar a razão. Desse modo, ela se tornaria nociva à produção acadêmica e ao pensamento racional da sociedade”, comenta.
Questionada sobre a fé ser um impedimento na produção acadêmica ou no modo de viver, a presidente da ABU-Frutal, Gabryella Fernandes aponta os extremos como problemas: “Eu acho que não é a fé que altera alguma coisa. É a religião, a religiosidade na verdade. E eu acho que são os extremos. A nossa frase é fé que pensa, razão que crê justamente porque nós buscamos explicações. Nós queremos realmente acreditar em alguma coisa e saber o porque daquilo. Não é algo alienado”.
O professor Rodrigo Furtado aponta que a religião tem lugares específicos para se manifestar. Quando ela se faz presente em outros meios, o processo é mais complexo: “Entendendo a liberdade de consciência e de expressão de pensamento e valores em respeito aos mesmos direitos de outras pessoas. Penso que isso deva ser feito nos espaços apropriados e específicos para os ritos. De modo que no espaço público e laico possamos antes debater, compreender, dialogar publicamente sobre os fatos do que trazer o foro íntimo, como é feito. Ou, então, abre-se para toda e qualquer manifestação religiosa e de crença”, analisa.
A discussão da religião no meio acadêmico também não é vista com bons olhos pela teóloga Realina: “Se é importante estudar a Bíblia? Eu acredito que no meio acadêmico não. Religião é coisa da família. Na universidade não iria dar certo, porque ali são pessoas de culturas diferentes. Às vezes, tem pessoas da mesma religião que brigam. Não é fácil discutir a Bíblia com pessoas que acreditam em coisas distintas”, aponta.
Mais do que crer, é preciso enxergar
Fica claro que a religião é um tema amplo e com um leque de opções para debates quase que incalculável. A presença de uma instituição religiosa no meio acadêmico gera polêmica e, mesmo que essa instituição seja aberta às pessoas de diferentes religiões, a existência de uma vertente e de como são trabalhadas essas discussões, são questões complicadas. Os assuntos polêmicos para a religião, por exemplo, evidenciam este fato.
Quando questionada sobre como acontece o debate sobre sexo com camisinha, relacionamento homoafetivo e qualquer outro assunto mais “forte”, a participante da ABU de Juiz de Fora, Paula Rejane, explica que os alunos que participam do grupo têm a Bíblia como uma espécie de manual de conduta e, a partir daí, buscam apoio com os mais experientes: “O que fazemos, geralmente, é ter momentos nos GB's (Grupo de Base). Procuramos aconselhamento de pessoas mais experientes, sejam pastores, assessores, abuenses mais antigos, etc. Eles nos ajudam a pensar sobre esses temas”, explica.
Mas e os não-evangélicos que frequentam as reuniões? Não fica uma situação desconfortável a procura por um pastor? Segundo Gabryella, não: “Nunca houve reclamação quanto a nossa "fonte" consultada. Geralmente, quem nos procura para tratar sobre esses temas sabe qual é nossa base de fé, a evangélica”, conclui.
A presença de uma vertente religiosa, portanto, abre espaço para o diálogo. E se uma sala foi concedida a um grupo na universidade, é justo que o espaço seja aberto para outros grupos também. O diretor do campus da UEMG Frutal, Ronaldo Wilson Santos, garantiu que, se for solicitada uma sala por algum outro grupo de estudantes, a situação será analisada. No caso da ABU, a resposta foi positiva.
A religião tem sua importância na vida e no mundo contemporâneo. Mas essa linha tênue entre razão e fé tem de ser definida para que uma não atrapalhe a outra. Ou, como diz a teóloga Realina: “Não pode ter fé cega. A fé cega não contribui, na minha opinião, pra nada”.
Se você quiser conhecer o perfil do Brasil quando o quesito é a religião, é fácil. Basta acessar o link http://oglobo.globo.com/infograficos/censo-religiao/
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